“Puerto Rico está bien cabrón”, grita Bad Bunny, acompanhado por uma plateia ensandecida, para não deixar dúvidas de que sua casa, esta pequena ilha no Caribe para onde 600 mil pessoas viajarão até setembro para assistir aos seus shows, vai muito bem, obrigado.
Nem por isso ele esconde as dificuldades enfrentadas pelos porto-riquenhos. “El Apagón”, a canção da qual este verso faz parte, lembra um dos problemas que castiga a ilha constantemente —os apagões, que deixam todos no escuro por dias.
A eles se somam a especulação imobiliária, que expulsa os locais para que os estrangeiros tenham suas casas de praia no Caribe, e desastres naturais como terremotos e furacões, velhos conhecidos na região, mas que estão cada vez mais intensos.
Bad Bunny, porém, prefere se centrar no que há de melhor em Porto Rico, um território dos Estados Unidos em que os moradores têm muitos dos deveres de um americano, inclusive o de pagar impostos, mas quase nenhum direito —nem mesmo o de votar para eleger o presidente do país.
É na tentativa de resgatar o orgulho dos seus, poucos meses depois de Porto Rico ter sido chamada de uma ilha de lixo flutuante num comício de Donald Trump, que Bad Bunny conduz sua série de shows “No Me Quiero Ir de Aquí” —não quero sair daqui—, com 30 apresentações em San Juan. A primeira dezena foi restrita a portor-riquenhos, mas agora, até meados de setembro, as portas estão abertas ao restante do público.
Depois, em comemoração ao lançamento de seu novo álbum, “Debí Tirar Más Fotos”, ele fará um giro que percorrerá o mundo todo, inclusive São Paulo, que recebe dois shows em fevereiro, mas deixará os Estados Unidos de fora. O artista não explicou por que não se apresentará naquele que também é seu país, já que os porto-riquenhos têm nacionalidade americana.
Seus fãs interpretam a ausência como uma retaliação ao novo mandato de Trump e uma preocupação de que os shows, que atrairiam muitos imigrantes latinos, poderiam se tornar um alvo frequente dos agentes federais que varrem o país na caça daqueles que vivem na ilegalidade.
Para os americanos, portanto, essa é a única chance de assistir ao show. Mas não foi fácil comprar um dos 400 mil ingressos disponibilizados em janeiro ao público de fora da ilha. As entradas se esgotaram em quatro horas.
Não à toa. Bad Bunny é o segundo artista mais ouvido do mundo no Spotify, o principal serviço de streaming de música que existe. Perde para Taylor Swift —ela, com 83,5 milhões de ouvintes mensais no aplicativo, e ele, com 2 milhões a menos.
Ao longo de pouco mais de três horas, o cantor de 31 anos atravessa boa parte da história da música porto-riquenha —a bomba, ritmo que surgiu com os africanos escravizados séculos atrás; a plena, como é chamada a música da classe trabalhadora; a salsa; e os ritmos contemporâneos como o reggaeton—, sem medo de ser incompreendido, mesmo depois que os shows se abriram para estrangeiros.
Ele surge no pé de uma montanha, o primeiro dos dois palcos montados na arena Coliseo de Puerto Rico, inspirado nessa vegetação densa vista na ilha, com bananeiras e um grande flamboyant de cada lado, além de galinhas de verdade cacarejando por todo canto.
É ali que ele canta os sucessos de sua discografia construídos sobre melodias inspiradas na música tradicional porto-riquenha, como a faixa de abertura, “Alambre Púa”, sobre uma relação amorosa cheia de perigos e amarras, o arame farpado do título, apresentada com uma banda que capricha na percussão, com instrumentos como o barril e o pandeiro, típicos da bomba.
No mesmo cenário ele apresenta “Pitorro de Coco”, uma homenagem à aguardente de Porto Rico e à vida campesina que lembra o cancioneiro jíbaro, do interior da ilha. Ao lado, uma banda afinada em instrumentos como o cuatro —que lembra um pequeno violão—, o bongó —dois pequenos tambores— e os maracás —um agogô feito de sementes.
Passada metade do show, o artista se dirige à casa cor-de-rosa construída na outra extremidade da arena. É de lá que ele canta seus sucessos mais urbanos, uma mistura de reggaeton com trap, entre o hedonismo “caliente” dos latinos —como em “Títí Me Preguntó”, uma ode aos prazeres da carne e às muitas mulheres com quem já se relacionou— e as faixas mais políticas —caso de “Nuevayol”.
Esta última, aliás, é exemplo de como sua caneta pode ir além das metáforas fáceis, tão comuns a superestrelas como ele. À primeira vista, pode parecer uma carta de amor a Nova York, que tem uma das maiores comunidades porto-riquenhas fora de Porto Rico, mas logo se revela uma declaração ambígua para a cidade, cheia também do descaso dos americanos com os latinos, que tiveram papel fundamental na construção da maior metrópole americana.
“Si te quieres divertir/ con encanto y con primor/ solo tienes que vivir/ un verano en Nueva York.” É com esse trecho de “Un Verano en Nueva York”, clássico do grupo El Gran Combo de Puerto Rico, que começa a música. Se era esperada a exaltação da metrópole, como na gravação original, nas mãos de Bad Bunny o “sample” ganha uma melodia metálica rápida, algo enlouquecedor, que lembra as sirenes incessantes da cidade que, para alguns, podem significar perseguição.
Depois de uma hora e meia emendando sucessos nesta casa cenográfica, o cantor volta ao palco montanhoso do outro lado da arena. É ali que ele encerra a apresentação cantando os hits de seu último álbum, como “Baile Inolvidable” e “Debí Tirar Más Fotos”.
Ainda que toda a apresentação seja acompanhada pelo público a plenos pulmões, é evidente que esta balada escolhida para arrematar a apresentação —uma canção menos restrita às dores e às alegrias de Porto Rico e mais voltada ao desejo universal de ter aproveitado melhor o passado— faz mais sucesso entre os estrangeiros e, desta forma, o coro da plateia soa mais alto do que nunca.
Em meio a esse cancioneiro de versos ultrarrápidos, num espanhol com o “D” e o “S” quase ausentes e o “R” convertido em “L”, “Debí Tirar Más Fotos” é de fato a faixa mais fácil de cantar mesmo para aqueles que têm o espanhol como língua materna. Mas todos os presentes sabem que ela é só a superfície deste artista que, ao fazer um resgate da história de seu próprio país, revive também a de ao menos um pedaço de cada canto da América Latina.
Todos, afinal, estão hoje na mira dos Estados Unidos e das sanções de Donald Trump, como antes estiveram no alvo da Europa e de sua colonização violenta, afora as diásporas forçadas. Mas também compartilham o clima quente dos trópicos, a personalidade receptiva de seus moradores e uma raiz comum entre muitos deles —a África.
Ao escutar a batida intensa dos tambores e dos pandeiros, ou mesmo de muitos instrumentos de nome difícil, mas com som tão familiar, a impressão é de que, não importa o idioma e as dificuldades de cada país, Bad Bunny cobre todos em seu show com um bálsamo para as feridas em comum que temos abertas. É como o Carnaval.
Fonte ==> Uol