Assim que o repórter anuncia sua origem, Grazia Quaroni exclama em francês, com forte sotaque italiano: “Nós temos muitos artistas brasileiros!” Mas a diretora da coleção da Fundação Cartier faz questão de ressalvar que a preocupação do novo espaço cultural de Paris, aberto ao público no sábado (25), não é promover a arte deste ou daquele país. “O que nos interessa são os artistas.”
De fato, desde sua criação, em 1984, a fundação reuniu mais de 4.500 obras de 500 artistas de 60 nacionalidades. A mostra inaugural, que vai até agosto de 2026, apresenta cerca de 500 delas. O Brasil está literalmente representado de “A”, de Claudia Andujar, a “Z”, de Luiz Zerbini —passando por Adriana Varejão, Alex Cerveny, Bruno Novelli, Ehuana Yaira Yanomami, Eliane Duarte, Izabel Mendes da Cunha, Jaider Esbell, Joseca Yanomami, Mahku (Movimento dos Artistas Huni Kuï), Santídio Pereira e Véio.
O interesse por artistas brasileiros não para aí. A fundação adquiriu recentemente uma obra da mineira Solange Pessoa, conta Quaroni. “Queremos dar a ela esse lugar central, é importante que as mulheres artistas estejam conosco”, diz a curadora.
Convidado para o evento de abertura, Alex Cerveny disse à Folha estar emocionado e orgulhoso. “A equipe trata os artistas de uma forma inigualável, algo inédito para mim. Uma vez que eles começam uma relação com o artista, não é uma relação descartável ou temporária.” É uma herança do trabalho de Hervé Chandès, diretor da fundação entre 1994 e 2023.
Cerveny está representado por duas telas de 2019, “Paraná Paraguai” e “Rio Negro e Solimões” —a sombra do próprio artista, projetada como se fossem as duas bacias hidrográficas— e pelo acrílico sobre tela “Mondo Reale: Stop, Look, and Listen”, de 2022. Ele chama a atenção para o fato de que a Fundação Cartier não etiqueta os artistas com rótulos como arte popular, ingênua ou antropológica. “O artista é o artista”, diz.
Assim, estão presentes, sem hierarquia, as esculturas de Véio, pseudônimo do sergipano Cícero Alves dos Santos, de 78 anos, que se inspira na paisagem e na fauna do sertão nordestino; ou uma série de 16 desenhos a caneta e lápis de Joseca Yanomami, sobre espíritos e paisagens do universo autóctone.
Os yanomami estão fortemente representados. Além de obras de Joseca e de Ehuana Yaira, estão expostas fotos de Claudia Andujar, uma tela de Adriana Varejão e uma película de 2003 do consagrado fotógrafo francês Raymond Depardon. Trabalhos de Andujar e da mexicana Graciela Iturbide serão tema de um debate na fundação, no próximo dia 14 de novembro.
A exposição é caracterizada pela enorme diversidade. O visitante vai encontrar a escultura hiperrealista “Mulher com Compras”, de Ron Mueck; um submarino fake de aço do belga Panamarenko; desenhos de David Lynch, mais conhecido como cineasta, morto em janeiro deste ano; um colorido “salão de eventos” do boliviano Freddy Mamani; ou as fotos inquietantes do japonês Daido Moriyama.
“A Fundação Cartier se interessa por todas as disciplinas”, afirmou no evento de lançamento o diretor-geral da instituição, o historiador de arte belga Chris Dercon.
Tanta variedade lado a lado ensejou uma crítica do jornal parisiense Libération, que insinuou preferir uma “museografia organizada”.
O novo prédio da fundação já nasce como visita imperdível para quem está em Paris e já fez o circuito obrigatório Torre Eiffel-Notre Dame-Champs-Elysées. A localização não podia ser mais central, na praça do Palais Royal, bem ao lado do recém-assaltado Louvre.
A arquitetura em si, a cargo do lendário Jean Nouvel, de 80 anos, é outra atração turística. Nouvel tem uma relação antiga com a fundação: foi ele que projetou o prédio anterior da instituição, um cubo de vidro inaugurado em 1994 no bulevar Raspail.
No novo edifício, foi preservada a fachada de 1855, que até 1974 foi uma monumental loja de departamentos à moda antiga, os Grands Magasins du Louvre. O título da mostra de abertura, “Exposição Geral”, é uma referência ao letreiro gigante que atraía os consumidores da Belle Époque.
Uma ideia feliz de Nouvel foi instalar vitrines, criando um diálogo entre a agitação da rua e a contemplação das obras. Os pedestres podem entrever o interior, com 6.500 metros quadrados de espaços expositivos moduláveis.
A inauguração da nova Fundação Cartier, em um espaço tão nobre de Paris, reafirma o poderio recente das instituições privadas no setor cultural francês. Ela se junta à Fundação Louis Vuitton, aberta em 2014, e à Coleção Pinault, desde 2021, como espaços nobres para a arte contemporânea, competindo com os museus estatais.
A competição com as entidades públicas se dá inclusive no recrutamento —assim como há quatro anos a Coleção Pinault foi buscar sua diretora-geral Emma Lavigne no Palais de Tokyo, centro de arte contemporânea sob controle estatal, em 2023 a Fundação Cartier tirou Chris Dercon da presidência da Reunião dos Museus Nacionais. As duas contratações geraram o temor de um esvaziamento dos museus públicos franceses.
Fonte ==> Uol



