Traição é um dos temas mais delicados, dolorosos e urgentes a serem abordados de forma corajosa e complexa. Convido você a pensar no ato não como um “erro moral”, mas como uma expressão da complexidade do desejo. Talvez mais duro do que lidar com a quebra da confiança seja enfrentar a inevitável quebra da ilusão da completude. A traição desvela algo estrutural do humano: o desejo é sempre dividido, e, ainda que nos amemos muito, não somos tudo para o outro.
Percebo que muitos de nós ainda têm dificuldade de aceitar que fomos destronados do posto de “vossa majestade o bebê”, como propôs Freud. A traição reedita nossa primeira ferida narcísica e nos devolve ao desamparo estrutural. Passamos a vida em busca de um “paraíso perdido”, alimentando a fantasia de que já vivemos um estado de completude. Ao descobrir-se traído, pensamos: “falta algo em mim ou na relação”. Sim, falta. Falta algo em todos nós. Somos seres faltantes. Essa insuficiência que emerge na relação é estrutural, e não culpa de um indivíduo, dos dois, tampouco da traição recente.
Casais felizes traem, pessoas comprometidas com a monogamia traem, quem ama trai. Segundo a pesquisa “Radiografia da infidelidade e infiéis no Brasil 2022”, 8 em cada 10 brasileiros admitem já ter traído, e 7 em cada 10 dizem acreditar que é possível amar e ser infiel. Como provoca Esther Perel: “Como podemos nos reconciliar com algo que é universalmente proibido e universalmente praticado?”.
Retomando a ideia de que o desejo é sempre dividido, é preciso, ainda que doído, entender que a traição não é sobre você, é sobre ele. Perel defende: “Quando buscamos um terceiro, não estamos virando as costas ao parceiro, mas à pessoa que nos tornamos. Não buscamos outra pessoa, buscamos um ‘outro’ de nós mesmos”.
Compreender que a traição reflete o desejo por novas formas de conexão, autonomia e liberdade —sem cair na ilusão de que “poderíamos ter feito isso juntos”— exige maturidade e nos convoca a olhar para nossos próprios desejos. Penso em Nilton Bonder, que em “A Alma Imoral” nos provoca: “A fidelidade será voltada ao próprio desejo ou à cultura na qual se está inserido? E se não atender ao seu desejo? Terá traído a si mesmo?”. E afirma: “Há traições pela fidelidade muito mais violentas do que as traições pela transgressão”.
Acredito que relacionamentos saudáveis não necessariamente são os que se tornam abertos para evitar a transgressão. São aqueles maduros o suficiente para entender que a transgressão faz parte do desejo humano e que realizá-la não significa o fracasso da relação, mas do ideal romântico (que por si só é insustentável). É preciso desmoralizar a traição.
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No entanto, quando a transgressão vem à tona, é preciso coragem e honestidade para enfrentá-la. A mesma moral que leva a pessoa traída a invalidar o caráter do parceiro faz com que o traidor queira se eximir da culpa e, por isso, minta.
Mais do que a traição em si, o que corrói os relacionamentos é a negação, a sequência de mentiras, o jogo de manipulação, o desmentido. E, mais do que nunca, acho importante discutirmos os impactos do desmentido nos casos de traição, visto a repercussão do caso de Vanessa Barbara contado em podcast da Rádio Novelo.
Na psicanálise, o desmentido é um mecanismo de defesa em que a pessoa simultaneamente reconhece e nega uma realidade incômoda na tentativa de evitar a dor do confronto com algo insuportável. Em situações de infidelidade, essa é uma peça-chave do jogo psicológico: o parceiro infiel, confrontado por provas evidentes, insiste em negar. A mentira escala envolvendo cada vez mais pessoas, criando uma rede de tensões emocionais que sufocam qualquer chance de reconciliação genuína.
O traidor, temendo ser descoberto, desloca a culpa para o outro com frases como “você está paranoico” ou “você deveria se tratar”. Essa dinâmica perversa inverte os papéis, fazendo o traído internalizar a culpa e duvidar de si mesmo. Surge, então, o gaslighting: um jogo de manipulação que destrói a confiança no próprio julgamento e aprofunda o trauma. Como aponta Sandor Ferenczi, o trauma não é apenas o evento em si, mas a forma como ele é tratado ou desmentido pelas figuras de referência. No caso da traição, não é apenas o ato que machuca, mas a forma como o traidor lida com ele.
A traição pode ser superada, mas primeiro precisa ser validada. E isso exige coragem do traidor para enfrentar as consequências de seus atos. A honestidade é o primeiro passo: reconhecer o ocorrido, validar os sentimentos do outro e abrir espaço para o diálogo. Sim, algo aconteceu. Sim, passaremos por dias mais sensíveis e difíceis. Para que haja elaboração é preciso que haja implicação no ocorrido —dos dois lados— e não um jogo de culpa.
Mais do que focar os detalhes do caso extraconjugal —um movimento comum de quem foi traído, que só alimenta seus fantasmas—, momentos de ruptura podem ser usados para algo mais produtivo: abrir diálogos honestos e profundos sobre desejos, desconfortos e acordos implícitos que precisam ser revisados.
Em seu TED Perel diz “nossa geração se casará de três a quatro vezes. Talvez com a mesma pessoa. Depois da traição, seu primeiro casamento acabou. Vocês querem juntos construir um segundo?”. Que tenhamos coragem de sustentar as faltas, as falhas e as consequências de nossos atos e desejos.
Fonte ==> Folha SP