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Pensar criticamente não é vício de tribo, mas um dever – 10/10/2025 – Ilustrada

Pensar criticamente não é vício de tribo, mas um dever - 10/10/2025 - Ilustrada

No texto “Não está na hora de criticar o pensamento crítico?”, Wilson Gomes mais uma vez ataca os estudos e políticas em torno das identidades subalternas. Desta vez, repete o mantra do movimento iniciado por liberais como Mark Lilla e Yascha Mounk e sustenta que a universidade e parte do campo intelectual tornaram-se reféns de um discurso militante, repleto de jargões e de “sinalização de virtude”, mais preocupado em parecer engajado do que em compreender o mundo.

A crítica é espirituosa, mas padece do mesmo problema que denuncia: parte de um fato real, mas o distorce até transformá-lo numa defesa da velha fantasia da neutralidade.

Gomes ironiza conceitos como “racismo estrutural”, “epistemologias”, “queer” e conclui que tais expressões servem apenas para demarcar pertencimento à “tribo” da “esquerda progressista”. O que ele trata como caricatura, porém, é resultado de um processo histórico: a entrada, ainda que tardia, de vozes e perspectivas subalternizadas na produção do conhecimento.

Termos como “corpos-territórios”, “decolonialidade” ou “afrodiaspórico” não são modismos; são formas de nomear experiências que a linguagem eurocêntrica da ciência moderna nunca conseguiu acolher, são transformações epistemológicas em curso e que fazem parte da própria organização dos campos científicos. São essas novas epistemes que Gomes, Lilla, Mounk e muitos outros intelectuais não suportam.

É legítimo criticar o uso automático desses novos conceitos. Mas confundi-los com vazio intelectual é ignorar as diversas transformações epistemológicas que a própria ciência passou, é ignorar toda uma tradição de pensamento crítico que, de Marx a Paulo Freire, de Angela Davis à Escola de Frankfurt, sempre insistiu que compreender o mundo sem transformá-lo é apenas uma maneira de aceitá-lo.

O autor lamenta que a 11ª tese de Marx sobre Feuerbach tenha sido lida como um chamado à militância. Marx, no entanto, não opôs interpretação e transformação: mostrou que a primeira é estéril sem a segunda. O que Gomes chama de “honestidade científica” não é neutralidade —é privilégio fantasiado de método. Nenhum conhecimento é produzido fora das disputas de poder. Fingir o contrário é, esta sim, uma forma de desonestidade intelectual.

Há, é verdade, uma crise na produção de conhecimento. Mas ela não decorre de um suposto tribalismo progressista. O que corrói a universidade é o negacionismo, a desinformação, a precarização do trabalho docente, o produtivismo sem reflexão e o desmonte do financiamento público.

Apontar o jargão como sintoma da decadência do pensamento é um diagnóstico cômodo —e socialmente míope. Enquanto professores acumulam jornadas e pesquisadores disputam migalhas de editais, o risco real é o da superficialidade imposta pela lógica de mercado, não o da reflexão crítica.

Não há nada de risível em pesquisas que articulam raça, gênero, colonialismo e desigualdade. Ao contrário: há nelas o esforço de reconstruir as condições históricas de produção do saber. O que o autor chama de “sinalização da virtude” é, muitas vezes, o gesto de tornar visíveis sujeitos e experiências que foram sistematicamente apagados do horizonte da razão ocidental.

Falta, sim, quem explique o mundo —mas sobretudo quem o explique sem fingir que o faz de um lugar neutro. Falta quem reconheça que todo pensamento é situado e que a crítica, longe de ser um adorno retórico, é o que impede a rendição à barbárie.

Quando Gomes lamenta que “falta quem entenda e explique o mundo com honestidade”, o que de fato lamenta é a perda do monopólio dos velhos mediadores —o professor, o filósofo, o jornalista (em especial, aqueles que sempre ocuparam lugares hegemônicos sem sofrerem, justamente, o exame da crítica)— sobre o que deve ou não ser reconhecido como conhecimento legítimo.

A crítica, já afirmava Kant, é o exame da razão. Para Foucault, ela é sinônimo de insubordinação, permanente insurgência. A crítica da crítica é necessária, mas se for feita com pensamento genuíno, sem a ideia errônea de que o conhecimento é neutro, positivista e as epistemologias imutáveis e estáticas.

Desqualificar a crítica em nome de uma suposta “honestidade” é nostalgia de um tempo em que poucos tinham o direito de falar e de produzir conhecimento. O que a universidade e a democracia precisam hoje não é menos crítica, e sim mais rigor, mais imaginação e mais compromisso com a vida coletiva. O pensamento crítico não pertence a uma tribo, ele é o esforço humano de olhar o mundo de frente e sob diferentes perspectivas —inclusive quando ele nos contradiz.



Fonte ==> Uol

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