“O tipo de garoto para quem bichas literárias escrevem sonetos, que começam com algo como: ‘Ó jovem grego de cabelos negros como o azeviche…’.” Foi assim que Jack Kerouac descreveu o menino que uniu e idealizou a geração beat, mas que aos 19 anos foi apagado da história por matar o próprio amigo, levando William Burroughs e Jack Kerouac para a prisão. Seu nome? Lucien Carr.
Na madrugada da noite de verão de 14 de agosto de 1944, ele andava com David Kammerer pelas margens do rio Hudson, no parque Riverside, em Nova York. A discussão se acalorou, e Carr esfaqueou o amigo, abriu seu corpo, encheu de pedras e o atirou no rio —enquanto o homem ainda respirava.
“Faça a escolha entre me amar ou me matar”, teria dito Kammerer, segundo Ann Douglas, uma estudiosa do movimento beat. Toda essa discussão ressurge neste ano em que é celebrado o centenário de Carr.
Quando chegou à Universidade Columbia, em 1943, o jovem que andava descalço pelo campus e se divertia em chocar os colegas mascando pedaços de vidro chamou a atenção dos alunos e professores também por seu intelecto. “Muitos na época achavam que ele poderia vir a se tornar um ‘segundo Arthur Rimbaud’”, afirma Douglas.
Foi Carr quem juntou os três beats. Descrito por Allen Ginsberg como “a cola” que uniu o grupo, o jovem se aproximou do poeta graças a um amor mútuo pelo compositor Johannes Brahms. “Ele é minha imagem ideal de virtude e consciência”, registrou o autor de “O Uivo” em seu diário.
Apesar de não ter nenhuma obra publicada, o tempo glorificou Carr como espécie de musa inspiradora do grupo e a primeira faísca de um dos movimentos mais influentes do século 20. Em romances dos outros três autores beat, Carr sempre aparece na pele de personagens que fazem referência à sua figura.
Phillip Tourian, o jovem que assassina o próprio amigo em “E os Hipopótamos Foram Cozidos em seus Tanques”, de Burroughs e Kerouac; Kenneth Wood, o intelectual carismático de “A Cidade e a Vila”; e Claude de Maubris, o enigmático aristocrata sedutor e instável de “Duluoz, o Vaidoso” são algumas das figuras inspiradas em Carr na literatura dos outros três.
Nos anos 1940, Nova York emergia da Segunda Guerra Mundial como uma cidade vibrante e moderna. As telas de Jackson Pollock e os solos de jazz de Charlie Parker excitavam a juventude —assim como a experimentação com as drogas, cada vez mais presente nos círculos boêmios. “Que cidade maravilhosa é Nova York! Estamos no lugar e no momento certo”, escreveu Kerouac em seu diário.
Os jovens do movimento flanavam pelo centro da cidade bêbados e cambaleantes, liderados por Carr, que os introduzia às ideias dos simbolistas franceses e à poesia de William Butler Yeats. Naquela época, ele plantou uma semente decisiva para a poesia beat que viria a ser feita —a noção de que a arte deveria escapar à moralidade convencional e que a consciência do artista se ampliava pela alteração dos sentidos.
O temperamento inconsequente de Carr, tão admirado pelos colegas, porém, quase levou o garoto a tirar a própria vida. Um pouco antes de se mudar para Nova York e começar a frequentar aulas na Columbia, Carr —como Sylvia Plath— enfiou a cabeça num forno. Aquela atitude era uma obra de arte, ele afirmou ao ser ouvido por um psiquiatra.
Ironicamente, o menino que tentou tirar a própria vida pouco depois tirou a de um amigo.
David Kammerer era um ex-professor de educação física e havia sido escoteiro-chefe de Carr anos antes, quando o garoto tinha 12 anos. Amigo de longa data de Burroughs, o homem se apaixonou obsessivamente por Carr e o perseguia desde então, o que o aproximou do círculo beat.
Carr o tratava com uma mistura de afeição e desprezo, mas a idolatria do mais velho agradava ao garoto. “Quando ele fazia algo escandaloso, Kammerer sorria radiante e perguntava a todos ao redor ‘não é maravilhoso?'”, escreve James Campbell, em seu livro “This Is the Beat Generation”.
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Ginsberg gostava de Kammerer, mas Kerouac não. E era recíproco. Naquele tempo, Carr passava cada vez mais tempo com Kerouac, o que enchia o mais velho de ciúmes. Um dia, num lapso de descontrole, Kammerer amarrou uma corda no pescoço do gato de Kerouac e tentou enforcar o bicho.
O crescente ciúme de Kammerer e a claustrofobia que ele fazia Carr sentir culminou no assassinato de 14 de agosto de 1944. Mais cedo, naquele mesmo dia, Kerouac e Carr haviam tentado embarcar num navio com destino a Paris, mas foram expulsos da embarcação por roubarem comida. Frustrados, os dois foram afogar as mágoas no bar West End, onde Carr acabou encontrando Kammerer.
Alguns drinques mais tarde, os dois caminharam até o local do crime. Depois de matar o homem, Carr correu para o apartamento dos amigos em quem confiava. “Dei fim ao velho ontem à noite”, teria dito Carr, segundo uma reportagem do jornal britânico The Guardian.
Burroughs sugeriu que o garoto se entregasse e, depois de uma última bebedeira com Kerouac, Carr seguiu o conselho. Ao entrar no gabinete do promotor público para confessar o crime, muitos pensaram que se tratava de uma brincadeira de mau gosto. Ninguém conseguia acreditar que aquele jovem esguio, estudante de Columbia, vestido de terno e carregando nas mãos um exemplar surrado de “Uma Visão”, de Yeats, pudesse ter cometido um ato tão vil.
O assassinato estampou a primeira página do jornal The New York Times e causou um escândalo na época. Além de Carr, Kerouac também foi preso, acusado de envolvimento no crime, por ter ajudado o amigo após o assassinato —Burroughs escapou da prisão porque sua família pagou uma fiança.
Carr, porém, foi favorecido pela legislação da época, marcada por um viés homofóbico, e justificou o crime com o argumento de autodefesa. Ele contou ter reagido a uma investida homossexual agressiva. Acabou condenado a dois anos de prisão, que cumpriu numa instituição de reabilitação juvenil. O caso foi mais tarde dramatizado no filme “Versos de um Crime”, com Daniel Radcliffe, recém-saído da franquia “Harry Potter”, no papel de Ginsberg, e Dane DeHaan como Carr.
Depois do cumprimento da pena, Carr se afastou da vida rebelde. Enquanto os velhos amigos partiram para viagens venturosas e se tornaram mitos literários, Carr escolheu a vida discreta e estável de jornalista. Foi editor da United Press International por quase 50 anos e morreu em janeiro de 2005.
Muitos acreditavam que, em segredo, Carr escrevia romances e que, após sua morte, os manuscritos viriam à tona. Mas isso nunca aconteceu. O assassinato marcou o início da dupla vida de Carr, a do jornalista, que ele vivia em público, e a do poeta maldito que um dia fora. Este último atributo era algo que ele renegou até o fim, a ponto de pedir a Ginsberg que retirasse a dedicatória a seu nome no poema “O Uivo”.
Carr foi, nas palavras de Wilborn Hampton, um colega que escreveu seu principal obituário, “um leão literário que nunca rugiu”.
Fonte ==> Uol