Aracaju

Quando estreou em 23 de março de 2015, “Os Dez Mandamentos” era uma aposta da Record. Após alguns anos produzindo séries com teor bíblico de forma esporádica, a emissora achou que era uma boa ideia investir em uma novela de 120 capítulos.

A meta era modesta: a Record achava que chegar aos 10 pontos na Grande São Paulo seria interessante. Naquela altura, a TV já havia desistido do projeto “A Caminho da Liderança”, que desejava roubar o primeiro lugar da Globo. A maior preocupação era vencer o SBT.

Só que, meio sem querer, “Os Dez Mandamentos” acabou inaugurando um filão: a novela bíblica, que completa dez anos e é considerado por especialistas como a última grande revolução do gênero mais popular do Brasil.

“Para o bem e para o mal, é inegável que as novelas bíblicas marcam época na história da TV”, diz Fernando Santana, sociólogo e especialista em telenovelas. Para ele, as tramas religiosas foram responsáveis por tornar as novelas nacionais menos ousadas.

“Elas anteciparam uma tendência de mercado, que já se via em outros países com as novelas da Turquia: tramas com um pé bem conservador na relação entre casais, por exemplo. Aqui, as bíblicas iniciaram esse movimento”, explica Santana.

Na época, “Os Dez Mandamentos” alcançou picos de 31 pontos na Grande São Paulo e venceu “Babilônia”, última novela de Gilberto Braga na Globo, criticada em alguns setores da sociedade por ser “pesada demais”.

Foi nessa esteira que até as novelas da Globo ficaram mais conservadoras. “Claro que não é só por causa do sucesso das bíblicas, mas o público mais velho de novelas ficou mais conservador por causa delas”, analisa Santana.

FÃS E QUEDA

Desde que “Os Dez Mandamentos” estreou, a Record só fez duas novelas contemporâneas: “Topíssima” (2018) e “Amor Sem Igual” (2019-2020). Ambas tinham uma linguagem calcada no que se via nas bíblicas, mas com modernidade ao fundo. O modelo tem afastado autores da empresa.

Além disso, existe uma reclamação sobre a forte interferência de Cristiane Cardoso, filha de Edir Macedo, nos textos. Responsável pela área de dramaturgia da empresa, Cristiane é hoje quem escreve as produções em parceria com outras roteiristas.

Para Santana, a situação é explicável. “Muitos autores entendem não ter estofo para escreverem folhetins religiosos e perdem a autonomia, algo que roteiristas de novela prezam bastante”, diz. A coluna tentou falar com Cardoso para esta reportagem, mas sem sucesso.

As bíblicas, porém, parecem ter chegado a um período de desgaste. Com o sucesso da novela turca “Força de Mulher”, a Record já providenciou a compra de outra trama do país, “Mãe”, para exibir em horário nobre. Ela vai disputar audiência com “Vale Tudo”, da Globo.

Com isso, deve haver um rearranjo na estreia das próximas tramas bíblicas da emissora. “Paulo, O Apóstolo” segue com estreia marcada para junho, mas “A Vida de Jó” e “O Senhor e a Serva”, previstas para este ano, podem ser adiadas para 2026.

Mesmo sem os índices de outrora, há uma forte comunidade fãs de produções bíblicas até hoje. No WhatsApp, um grupo com mais de 600 membros discute produções e divulga notícias sobre atores populares do gênero.

“Gosto das bíblicas por que nem parecem que são tramas religiosas. São comuns, só se passam no período e explicam a história”, diz Rakelly Silva, moradora de Salvador (BA), que acompanha as produções com afinco desde 2015, quando tinha 11 anos.

“Sempre que vejo uma cena de ‘Os Dez Mandamentos’, paro para assistir. É minha novela favorita”, destaca, dizendo que adora o galã Guilherme Winter, interprete de Moisés e protagonista do folhetim. Curiosamente, o ator processa a Record devido aos baixos valores pagos pelas reprises.

Mas até Rakelly reconhece que o ciclo das religiosas pode estar chegando ao fim. “Fizeram muitas novelas já, né? Estão se repetindo. Se terminar, vou entender”, completa. Para alívio dela, no entanto, ao que consta, a Record não pretende dar fim ao filão tão cedo.