A prevenção continua sendo o elo mais fraco da política global de controle do câncer. Apesar de ter o potencial de evitar metade dos casos no mundo, ela não avança por falta de vontade política, desconhecimento da população e lobby de indústrias que lucram com produtos comprovadamente nocivos.
A afirmação é da médica epidemiologista Elisabete Weiderpass, 59, diretora da Iarc (Agência Internacional de Pesquisa em Câncer), da OMS (Organização Mundial da Saúde), que participou de um seminário internacional de controle do câncer, promovido pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), no Rio de Janeiro.
Brasileira, naturalizada sueca e finlandesa, ela é autora de mais de mil artigos científicos publicados em revistas internacionais revisadas por pares e já atuou como chefe de departamento de pesquisa de câncer da Noruega e de grupo de epidemiologia genética na Finlândia. É também professora-adjunta honorária da Escola de Saúde Pública de Yale (EUA).
Segundo Weiderpass, países de renda média, como o Brasil, enfrentam risco de um verdadeiro tsunami de novos casos de câncer, especialmente diante do envelhecimento populacional e da explosão de diagnósticos prevista para as próximas décadas.
Em 2022, foram 20 milhões de novos casos e 10 milhões de mortes por câncer no mundo. Até 2050, esses números devem quase dobrar. “Nenhum sistema de saúde conseguirá suportar apenas detectando e tratando. Precisamos proteger e prevenir”, afirma.
Para a epidemiologista, implementar 17 medidas de prevenção mais eficazes é a estratégia mais urgente para evitar o colapso futuro. Leia abaixo as 17 ações do Código Latino-Americano contra o Câncer.
O tabaco, segundo ela, permanece como o inimigo público número um da saúde humana. “Mesmo com 60 anos de provas científicas irrefutáveis, governos ainda cedem ao lobby do setor, permitindo a venda de produtos responsáveis por 20% de todos os casos de câncer.”
O que ainda falta para que as medidas que previnem o câncer sejam compreendidas e adotadas? – Falta conhecimento. A população, de modo geral, sabe pouco sobre prevenção. Mesmo entre profissionais de saúde, poucos conseguem enumerar as principais recomendações. São 17 ações reunidas no Código Latino-Americano contra o Câncer, baseadas em evidências produzidas na própria região. São coisas que realmente funcionam aqui.
Envolvem evitar tabaco em todas as formas, controlar álcool, manter alimentação equilibrada e peso saudável, praticar atividade física, reduzir exposições ocupacionais e ambientais, amamentar, evitar radiação solar excessiva e radiações desnecessárias em exames de imagem. Divulgar isso de forma clara é essencial.
A senhora afirma que pelo menos metade dos cânceres poderia ser prevenida. O que sustenta essa afirmação? – Evidências científicas robustas. Sabemos como prevenir e temos provas de que 50% dos casos não ocorreriam se as recomendações fossem implementadas. Quando discutimos custos, pressão sobre hospitais e necessidade de investimentos, é fundamental lembrar que metade dos diagnósticos não deveria existir. E por que não deveriam ocorrer? Porque a gente sabe como prevenir.
Por que então as sociedades e os governos não adotam essa agenda? – Falta vontade política. O tabaco é o melhor exemplo. Há 60 anos sabemos que metade dos fumantes morre por causa do cigarro, um produto que é usado exatamente da forma indicada pelo vendedor, pela indústria. E as pessoas continuam fumando. Claro, é uma substância aditiva que causa uma adição física, é uma adição potente. A nicotina é uma das substâncias mais aditivas que existem e leva a uma adição psíquica também, pelo ritual, etc.
E tem, atrás disso, todo o lobby da indústria de tabaco, que é fortíssimo, um dos lobbies mais importantes do mundo. Existem livros, vários livros publicados das técnicas que a indústria de tabaco usa para continuar dissuadindo os governos a aumentar o imposto.
No código contra o câncer, a gente tem também o sumário de todas as ações que funcionam para diminuir o tabagismo no mundo. Alguns países estão fazendo um trabalho muito bom, como o Brasil fez até um certo ponto. Mas agora aumentou a proporção da população que recomeça a fumar…
Esse aumento entre jovens acende um alerta? – Sem dúvida. O tabagismo causa cerca de 20% dos casos de câncer no mundo, e no Brasil não é diferente. É o inimigo público número um em termos de câncer, de doenças cardiovasculares etc. Você não deixa adolescente comprar veneno de rato e tomar na pausa da escola. Mas muitas famílias e governos toleram que adolescentes comprem tabaco e fumem na pausa da escola, nas universidades. É o mesmo conceito.
Alguns países têm adotado políticas de “geração sem tabaco”. Esse caminho lhe parece promissor? – Sim. Países que proibiram a venda de tabaco para pessoas nascidas depois de determinados anos, como 2010, estão criando uma geração que jamais terá acesso legal ao cigarro. É uma política ousada, mas necessária. Para enfrentar o tabaco, medidas tímidas não bastam.
Como a senhora avalia o desafio dos cigarros eletrônicos? – É um grande desafio por várias razões. A primeira é que a quantidade de nicotina é muito grande e isso acelera a dependência. Muitos produtos são claramente direcionados a adolescentes, com altas doses de nicotina e sabores infantis.
A dependência, que no cigarro costuma levar três semanas, no vape pode se estabelecer em cinco dias porque a quantidade é maior e a absorção da nicotina é mais rápida e vai diretamente ao cérebro. É uma estratégia deliberada da indústria. Uma hipótese para o aumento recente do tabagismo é que jovens começam no vape, tornam-se dependentes e depois usam o que estiver disponível.
No Brasil, apesar de a venda ser proibida, o uso de cigarros eletrônicos ilegais é generalizado. A indústria defende a regulamentação até como política de saúde pública. O que a sra. pensa sobre isso? – Não discuto a parte jurídica, mas não há justificativa para expor crianças e adolescentes a um coquetel de substâncias tóxicas e altamente aditivas. Estamos diante de um experimento natural global. Há evidências de riscos cardiovasculares, neurológicos e pulmonares graves, incluindo mortes. A evidência sobre câncer está crescendo. A Iarc ainda não fez uma monografia específica por falta de orçamento, mas isso está entre as prioridades.
As empresas afirmam que os vapes não foram desenhados para crianças e adolescentes...– Obviamente que foram. O marketing infantilizado está em qualquer site. Na Europa, há publicidade, um marketing ativo, na porta de escolas, de universidades, em bares e restaurantes que são frequentados por adolescentes. Nas redes sociais, o estímulo é constante. É falso dizer que reduzem danos. Não reduzem.
Qual é o maior obstáculo global para reduzir a incidência de câncer? – A combinação entre falta de vontade política e o poder dos lobbies de indústrias que lucram com substâncias nocivas. O tabaco é o maior deles, mas não o único.
Quais experiências exitosas de outros países no controle do câncer poderiam nos inspirar? – Os países nórdicos são exemplos consistentes. Eles possuem políticas integradas de prevenção, rastreamento, diagnóstico precoce e tratamento. Mesmo com populações idosas, conseguem resultados eficazes com custos sustentáveis. A chave é ter programas nacionais que considerem fatores de risco, história natural da doença, prevenção primordial, vacinação, rastreamento, cuidado e paliativos.
O que países de renda média, como o Brasil, precisam fazer imediatamente? – Implementar o Código Latino-Americano e Caribenho contra o Câncer. Ele reúne 17 recomendações práticas para reduzir pela metade o risco de câncer e políticas públicas essenciais para conter o tsunami de casos que está por vir. O custo do diagnóstico e do tratamento cresce de forma insustentável. Países de renda média e baixa serão os primeiros a sofrer. Sem prevenção, o sistema não aguenta.
Estou convencida de que se as informações contidas neste código permearem as decisões dos gestores e forem levadas a sério em termos de política de saúde e de proteção social, o Brasil pode ser pioneiro nesse enfrentamento. É um trabalho que exige coragem política porque muitos interesses econômicos falam mais alto.
A vacina contra o HPV, que previne o câncer de colo de útero e vários outros tumores, ainda enfrenta resistência no Brasil. O problema é comunicação? – A resistência a vacinas é um fenômeno que se observa em muitos países e ele é inversamente proporcional à confiança dos cidadãos no processo governamental e no processo democrático. Eu acho que a resistência vacinal no Brasil ainda é menos importante do que em vários outros países. Por exemplo, a França é um país onde existe uma resistência à vacinação muito importante. A Áustria é um outro país que eu poderia citar. E os Estados Unidos, obviamente.
A vacina do HPV é extremamente segura e eficaz para prevenir câncer do colo do útero e outros tumores relacionados ao HPV em meninas e meninos. A proteção dura pelo menos 15 anos, talvez mais. Como qualquer produto médico, pode ter riscos, mas eles são ínfimos comparados ao benefício.
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O envelhecimento populacional vai alterar drasticamente o cenário epidemiológico do câncer? – Vai, e nenhum país do mundo está preparado para enfrentar o tsunami de casos de câncer que vamos observar daqui até o ano 2050.
Trabalhamos de forma intensiva com estatísticas de saúde ao redor do mundo, com mais de 185 países, coletando dados originais em registros de câncer. E a metodologia científica que nós desenvolvemos para fazer projeções de casos de câncer no futuro é bastante sólida e já provou em décadas precedentes de ser bastante precisa.
E o que os nossos estudos indicam é que no ano 2022, o mais recente onde nós temos números objetivos e confiáveis, foram 20 milhões de casos de câncer e cerca de 10 milhões de mortes em todo o mundo. As nossas projeções são de um aumento de 77% dos números totais de câncer e de 87% de mortes em 2050.
Esse aumento vai causar asfixia no sistema de saúde de praticamente todos os países do mundo. Não existe nenhum país que vai poder reagir a esse desafio somente construindo hospitais e treinando mais profissionais de saúde, porque o número vai ser extremamente grande. Então é uma necessidade que os países mudem de paradigma, de detectar e tratar para prevenir e investir na proteção das populações, especialmente em relação à exposição a produtos carcinogênicos.
Muitos tratamentos oncológicos estão chegando ao mercado a preços impagáveis. Como melhorar o acesso? – O custo é um desafio enorme. Nenhum sistema de saúde está preparado para o volume de medicamentos que estão chegando ao mercado. Além disso, muitos novos medicamentos não oferecem ganhos substanciais de sobrevida ou qualidade de vida. É essencial distinguir os que têm valor agregado daqueles cujo benefício não justifica o uso, considerando efeitos adversos importantes. O desafio com vários tipos de novos medicamentos é, sem dúvida, o custo.
Elisabete Weiderpass, 59, é graduada em medicina pela Universidade Federal de Pelotas (RS), com mestrado e doutorado em ciências. Especialista em epidemiologia e prevenção do câncer, é diretora do Iarc, agência especializada em câncer da OMS (Organização Mundial da Saúde), com sede em Lyon, França, desde 2019. Já chefiou departamentos e grupos de pesquisa na Noruega e na Finlândia e é professora adjunta honorária na Escola de Saúde Pública de Yale, nos EUA.
Saiba quais são as 17 ações do Código Latino-Americano contra o Câncer
- Não fume ou use qualquer outro tipo de tabaco
- Faça da sua casa um lugar livre da fumaça do tabaco
- Mantenha ou atinja seu peso saudável
- Faça atividade física diariamente
- Faça uma alimentação saudável
- Evite o consumo de bebidas alcoólicas
- Amamente
- Proteja-se da exposição direta ao sol
- Evite fumaça de carvão mineral ou lenha
- Limite o tempo de exposição à alta poluição do ar
- Informe-se se o seu trabalho o expõe a substâncias cancerígenas
- Converse com profissionais de saúde sobre a bactéria Helicobacter pylori
- Converse com profissionais de saúde sobre a prevenção às hepatites B e C e ao HPV
- Converse com seu médico sobre reposição hormonal na menopausa
- Se você tem de 50 a 74 anos, faça exame de prevenção ao câncer de cólon e reto
- Se você tem mais de 40 anos, faça exame clínico de mamas. A partir dos 50 anos, faça mamografia
- Se você tem mais de 30 anos, faça o teste do vírus HPV
Fonte ==> Uol



